Criminosos chamados de “suspeitos”, polícia criticada de norte a sul e mais comoção pela morte de bandidos do que de crianças. (Leia a opinião de Patrícia Lages).
Dois acontecimentos simultâneos mostram como a cobertura da imprensa militante tem trabalhado atualmente em prol da implantação de uma inversão de valores jamais vista. Basta uma rápida pesquisa no Google e qualquer um pode verificar a diferença no tom e nos termos nos casos das mortes ocorridas em uma creche no município de Saudades, em Santa Catarina, e da ação policial na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro. A seguir, algumas delas.
Sobre a morte de três crianças e duas professoras de uma creche na pacata cidade catarinense: “Vítimas mortas em ataque a creche em Saudades levaram ao menos 5 golpes de facão”
Polícia faz operação em Jacarezinho, no Rio de Janeiro: ações de risco e salários pífios. JOSE LUCENA/THENEWS2/ESTADÃO CONTEÚDO – 06.05.2021
A manchete não menciona o assassino e, por todo o texto, o classifica como “jovem de 18 anos”, “autor do atentado” e que “não tinha antecedentes criminais”. Sobre o crime, descreve: “ele entrou com duas armas na escola, mas só usou uma”. Ele nem foi tão violento assim, não é mesmo? Em sua maioria, as matérias se resumem a falar sobre as vítimas, suas famílias e seus velórios:
“’Muito difícil. Todos sofrem juntos’, diz avô sobre a morte da neta em ataque a creche em Saudades”. “’Perguntei pelo meu filho e descobri que estava morto’: pais descrevem o pesadelo após ataque a creche em SC”
Por outro lado, trazem pouca ou nenhuma informação sobre o assassino, a quem chegam a chamar apenas de “suspeito” ou, como nesta manchete: “Acusado por 5 mortes em creche de SC usou faca inspirada em espada ninja”.
A forma como a imprensa descreve o homem que invadiu uma creche e matou cinco pessoas, sendo três crianças e duas funcionárias, suaviza o ato e tenta conduzir a população a vê-lo como mais uma vítima da sociedade. Para quem ainda não está convencido disso, eis aqui o significado de algumas palavras, que todo jornalista conhece muito bem:
- Suspeito – alguém de cuja existência, exatidão ou legitimidade não se tem certeza
- Acusado – que foi alvo de acusação, incriminado, denunciado
- Culpado – aquele que delinquiu, infringiu a lei agindo com dolo ou culpa, criminoso, réu
- Bandido – indivíduo que pratica atividades criminosas
Fabiano Kipper Mai é o adulto de 18 anos que assassinou cinco pessoas a facadas. Ele é um criminoso e não apenas suspeito ou acusado. Agora veja a diferença de adjetivação quando o assunto é a ação policial contra o tráfico de drogas em uma comunidade violenta no Rio:
“Jacarezinho: ‘Em nenhum lugar do mundo ação policial com 28 mortos seria aceita’, diz cientista político”; “Mortes no Jacarezinho: ação violenta da polícia fortalece facções e milícia”; “Moradores criticam ação policial na comunidade do Jacarezinho”
O cientista político só não mencionou em que lugar do mundo existe algo parecido com as comunidades de traficantes do Rio de Janeiro e com uma polícia que trabalha nas condições que a nossa enfrenta diariamente. E o que dizer sobre o “fortalecimento” que a ação causou? Seria para levar as pessoas a pensarem que é melhor não mexer com eles porque a coisa ficaria ainda pior?
E a cereja do bolo é a cobertura de um telejornal, onde a apresentadora diz: “Conseguiu o feito macabro de ser a operação mais letal da história do Rio de Janeiro. Vinte e cinco mortos, um policial, e o discurso da polícia é que ‘tava’ todo mundo fortemente armado. Aparentemente ‘tavam’ muito armados, mas não sabiam atirar, né? Porque eram 24 armados, e mataram só um do outro lado.”
Uma fala cheia de adjetivos negativos em relação à ação da polícia e que releva o fato de os criminosos estarem, de fato, fortemente armados, afinal de contas, eles nem sabiam atirar. Prova disso é que “mataram só um do outro lado”. A frase já diz, com todas as letras, em que lado a própria pessoa se coloca.
Um policial sai de casa todos os dias sem saber se voltará para sua família, a troco de um salário pífio, trabalhando em condições precárias. Qual desses jornalistas se arriscaria a subir o morro de uma comunidade para prender bandidos, criminosos e traficantes – que não têm nada a perder – ciente de que eles possuem armamento muito mais efetivo, estão em maior número e dominam a difícil geografia do local?
E as perguntas que ficam, mais uma vez, são: a quem interessa colocar a população contra a polícia dessa forma? A quem interessa essa bandidolatria descarada promovida por uma imprensa militante? A população que sente na pele essa violência certamente não se beneficia com nada disso. Então, quem?
Patricia Lages é autora de 5 best-sellers sobre finanças pessoais e empreendedorismo e do blog Bolsa Blindada. É palestrante internacional e comentarista do JR Dinheiro, no Jornal da Record.