A poucas semanas da data marcada para o início dos Jogos Olímpicos de Tóquio, no dia 23 de julho, a realização do evento é cercada de disputas que vão muito além do esporte. A covid-19 levou o Comitê Olímpico Internacional (COI) e organizadores locais, em março do ano passado, a adiar os Jogos, na expectativa de melhora do cenário. Hoje a pandemia está longe de ser controlada, mas o consenso pelo adiamento deu lugar a uma queda de braço: de um lado, organizadores pressionados por patrocinadores e detentores de direitos de transmissão garantem a realização; do outro, 83% dos japoneses se opõem, conforme pesquisa do jornal Asahi Shimbun, preocupados com a disseminação do vírus – numa reprodução do debate entre priorizar vidas ou a economia que tem marcado a pandemia.
É um cenário muito diferente daquele da primeira vez em que o país sediou as Olimpíadas: em 1964, o Japão usou o evento como ferramenta de diplomacia pública, se apresentando ao mundo como uma nova nação, unida e renascida da II Guerra Mundial. Pretendia também se desfazer da imagem de um país com pretensões imperiais sobre o Pacífico e a Ásia, e que vinha marcado aos olhos do ocidente pela utilização de estupros em massa como política de Estado. Nos anos que sucederam o final da II Guerra, o Japão passou de um país destruído, com fome e miséria, para se tornar referência em tecnologia e dinamismo econômico.
Na disputa pela escolha da cidade-sede, Tóquio derrotou Detroit, nos EUA, a capital das indústrias automobilísticas à época, justamente no momento em que o paradigma fordista perdia espaço para o toyotismo. A Tokyo Tower, inaugurada poucos anos antes, superava a Torre Eiffel, tornando-se a mais alta do mundo. O Tōkaidō Shinkansen, primeiro trem-bala do planeta, foi inaugurado dias antes do início dos Jogos, e reduziu pela metade o tempo de viagem até Osaka. O Japão renascia determinado a ser visto como importante ator na comunidade global, e os Jogos Olímpicos eram a vitrine perfeita para seu soft power. Adicionando sensibilidade ao clima de euforia, a pira do Estádio Nacional foi acesa por Yoshinori Sakai, corredor dos 400 metros rasos conhecido como bebê de Hiroshima, por ter nascido no mesmo dia do ataque e celebrado como símbolo de reconstrução e compromisso com a paz
A celebração da paz e a neutralidade política são princípios – ao menos formalmente – do movimento olímpico desde que o Barão Pierre de Coubertin os idealizou no final do século XIX. Coubertin, que cresceu em meio à aristocracia francesa, viu seu país ser humilhado na Guerra Franco-Prussiana, em 1870-71, e buscou na Grécia Antiga a inspiração para recriar os Jogos, promovendo um ambiente em que as disputas entre nações não trouxessem morte, destruição e sofrimento. Os primeiros Jogos Olímpicos da Era Moderna aconteceram em Atenas, em 1896, reunindo 14 países, e desde então o evento tem crescido não apenas no número de atletas, delegações, modalidades e cifras envolvidas, mas também na dimensão política. Embora o COI insista em mantê-la longe da competição, na prática governos e grupos organizados disputam com atletas as câmeras e atenções da comunidade internacional na expectativa de consagrar ideologias, amplificar mensagens e promover causas.
Em 1936, Hitler pretendia celebrar nos Jogos de Berlim a superioridade da raça ariana, mas as quatro medalhas de ouro de Jesse Owens, atleta negro norte-americano, frustraram os planos nazistas. Na edição de 1948, a Inglaterra usou os Jogos de Londres para se consagrar como vitoriosa na II Guerra, ocasião em que os Jogos Paralímpicos foram criados, como reconhecimento a ex-combatentes que tiveram membros amputados nas batalhas e que agora defenderiam seus países na condição de atletas. Já em 1972, em Munique, o grupo Setembro Negro promoveu um atentado contra a delegação de Israel em represália à ocupação da Palestina. Na década seguinte, ainda que a Guerra Fria desse sinais de distensão, os boicotes liderados pelos EUA aos jogos de Moscou em 1980 (em resposta à invasão soviética do Afeganistão) e do bloco comunista a Los Angeles em 1984 (por preocupações quanto à segurança de atletas) deixavam claro que a paz ainda era distante. Com a queda do bloco comunista e a reorganização do sistema internacional, os Jogos de Seul, em 1988, evidenciavam a ascensão dos Tigres Asiáticos, referência de vitalidade econômica e avanço tecnológico.
No século XXI, a reconfiguração do tabuleiro de poder no sistema internacional, evidenciada pelo papel que a China assumiria na condição de locomotiva do comércio e indústria globais a partir da crise de 2008, foi anunciada, para um observador mais atento, com os Jogos de Beijing. Semanas antes da quebra do Lehman Brothers, as sofisticadas instalações, como o Estádio “Ninho do Pássaro” e o Complexo Aquático “Cubo d’Água” impressionavam espectadores ao redor do planeta, até então acostumados com a ideia de país fechado para o mundo. A ascensão do “sul global” era simbolizada pela criação do BRICS e pela proposição de uma ordem econômica e política paralela àquela criada pelos países desenvolvidos ocidentais. Na avaliação dos emergentes, instituições como ONU, OMC e FMI não correspondiam mais às novas dinâmicas de poder, e a antiga demanda brasileira por reconhecimento, se ainda não rendeu o almejado assento no Conselho de Segurança, por outro lado garantiu o direito de receber os Jogos de 2016.
Coubertin pensou as Olimpíadas como um antídoto para as guerras, e as guerras são, como disse Clausewitz, “a continuação da política por outros meios”. Por mais que se pretenda o contrário, os Jogos sempre estiveram impregnados de disputas que vão muito além dos campos de jogo e das pistas de corrida. A geopolítica nunca esteve ausente desses eventos, e se não há dúvidas de que o mundo pós-pandemia será diferente, tampouco se sabe exatamente como será. Se de fato acontecerem, os Jogos de Tóquio podem oferecer insights e elementos para prospecções, basta direcionar o olhar para fora das quatro linhas.