Com uma carta em punho, Maria de Fátima Pinheiro Evangelista, de 57 anos, está decidida a atravessar o abismo entre a sua vida e as principais bandeiras ideológicas de Jair Bolsonaro para tentar sobreviver à crise brasileira. Da casa alugada e sem reboco em que vive sozinha na periferia de Juazeiro do Norte (Ceará), ela ―que não sabe ler ou o que é comunismo― insistiu para que a única filha escrevesse uma carta ao presidente. Quer alcançar o direito à aposentadoria rural, negada porque não conseguiu comprovar o tempo de serviço na roça, onde trabalha desde os oito anos.
Maria de Fátima até chegou a receber o auxílio emergencial no ano passado e viu a vida melhorar por um tempo. Mas foi cortada do programa depois de ter feito o pedido de aposentadoria e agora vive com pouco mais de 250 reais por mês, que consegue lavando roupas para vizinhos. A energia já não é paga há meses e com o gás tão caro ela precisa cozinhar também à lenha para economizar. A comida vem do que planta e de doações. Por isso, a carta é uma esperança. E ela esgueira o corpo para entregá-la a Bolsonaro, que passava acenando de cima de um carro ao lado de sua casa.
A ida do mandatário brasileiro a Juazeiro do Norte na semana passada tinha como justificativa oficial a inauguração de um conjunto habitacional. Mas também é parte de uma estratégia que busca abocanhar votos em um reduto majoritariamente lulista para as eleições do ano que vem. Em 2018, Bolsonaro conseguiu apenas 24% dos votos no segundo turno na cidade, contra 76% de Fernando Haddad, substituto de Lula, impossibilitado de concorrer àquela eleição. No ano que vem, entretanto, ele deverá disputar contra o próprio ex-presidente, criador do Bolsa Família, programa que tirou milhares da pobreza e ao qual Bolsonaro já chamou de “voto de cabresto”. Uma pesquisa recente do Datafolha aponta que o presidente só tem 16% da preferência do eleitorado na região Nordeste enquanto Lula conta com 64%. O Nordeste também lidera a rejeição a seu Governo, como mostrou pesquisa da Poder Data esta semana, feita entre os dias 16 e 18 de agosto: 72% classificam a gestão Bolsonaro ruim ou péssima, enquanto no Sudeste a rejeição é de 59%, e 58% no Sul e Centro-Oeste. No Norte, o presidente ainda tem preferência, e a rejeição fica em 46% contra 52% de aprovação.
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Com sua popularidade derretendo no mercado financeiro e entre filões de eleitores de uma classe média descontente com sua postura antidemocrática e sua gestão da pandemia, Bolsonaro tenta avançar sobre regiões mais carentes, onde os investimentos federais tendem a aparecer mais. Ele sabe que precisa abocanhar parte do eleitorado de Lula —que inclui pessoas beneficiadas pelo auxílio pago durante a pandemia— para tentar estancar a sangria provocada por sua impopularidade crescente, quando o voto antipetista que o ajudou em 2018 também está em fuga. Onde falta o básico como comida e trabalho, não sobra muita margem para a polarização política. E muitos estão dispostos a votar em quem, de fato, indique que pode melhorar suas vidas.
“Se fosse Lula o presidente, eu fazia igual. Bolsonaro se quiser tomar água na minha casa, toma. Acho que presidente é de todo mundo e tem que olhar para quem é pobre”, diz Maria de Fátima, que já foi eleitora do PT e não faz ideia a quem dará seu voto no ano que vem. “Nem sei quem são os candidatos ainda. Espero que Bolsonaro leia minha carta e faça a vida da gente andar. Não sei de quem é a culpa, só sei que está tudo muito difícil”, emenda. Ela não conseguiu entrar no local onde o presidente discursou.
Maria de Fátima vive com 250 reais por mês em Juazeiro do Norte.
Desde junho do ano passado, Bolsonaro intensificou suas viagens ao Nordeste. Em 2020, foi três vezes mais a cidades da região do que no seu primeiro ano de mandato. Neste ano, já passou por cinco dos nove estados nordestinos. No seu discurso em Juazeiro do Norte, afirmou que o valor investido no auxílio em 2020 equivaleria a 13 anos de Bolsa Família. Admitiu a inflação, que criou alimentos proibitivos como a carne e levou famílias a voltarem a cozinhar à lenha, mas colocou a conta da crise no colo dos governadores. E ainda que tenha defendido suas pautas conservadoras —como o combate ao comunismo e a defesa da família e da propriedade—, se vendeu como um grande finalizador de construções inacabadas pelos Governos anteriores. Tem dito que já inaugurou mais de 4.700 obras desde 2019 na região, entre elas a Transposição do São Francisco, iniciada nos Governos petistas. Para coroar, prometeu prorrogar o auxílio até novembro e explorou o que poderá ser seu grande trunfo eleitoral no ano que vem: um novo e turbinado Bolsa Família, que agora se chamará Auxílio Brasil, apagando o nome que é marca lulista.
“Vou votar em Bolsonaro. Já votei a primeira vez e não acho que ele seja ruim pro comércio. Se não fosse o auxílio, tinha muito mais gente passando fome. Eu mesma parei de trabalhar por meses na pandemia e passei até precisão”, conta a comerciante Maria Lúcia da Silva, de 65 anos, que trabalha há mais de 40 anos em uma lanchonete no mercado público do centro de Juazeiro do Norte.
A comerciante Maria Lúcia da Silva, de 65 anos, trabalha há mais de 40 anos em uma lanchonete no mercado público de Juazeiro do Norte.
Ainda que a implantação do auxílio tenha lhe rendido alguma simpatia de parte dos beneficiários, a tarefa de Bolsonaro em conquistar este eleitorado não é fácil diante de tanta gente que se agarra a uma memória de estabilidade econômica e de maior facilidade de consumo durante o Governo Lula, enquanto associa a alta inflação e a redução do poder de compra ao atual presidente.
“Bolsonaro vai prometer um monte de coisa para não sair da Presidência, mas aqui nosso voto é de Lula. Foi ele que deu mesmo oportunidade ao pobre, até pra estudar”, diz Idenilson Lima Monte, de 27 anos. Ele trabalha em um terreno arrendado na zona rural de Juazeiro, onde planta para comer e cuida do gado do patrão. Ao lado dele, a esposa Luana Neves de Oliveira, de 30 anos, afirma, com a filha pequena nos braços, que também pretende votar no petista. “O auxílio do Bolsonaro está só caindo e o preço de tudo subindo. Recebo 250 reais e hoje só dá mesmo para a fralda e o leite da minha filha. Um perfume que a gente precisa não podemos mais comprar”, emenda.
Carne todo dia
Quando Maria Jocimar da Silva recebeu as primeiras parcelas de 1.200 reais do auxílio no ano passado, a família conseguiu comer carne todos os dias e colocar gasolina no carro que usa para levar os vizinhos que precisam ao hospital. Mas o valor do benefício diminuiu para 250 reais em abril deste ano, e o preço de tudo aumentou. O resultado é que um botijão de gás, que custa 130 reais, dura mais de um mês porque há pouca comida para cozinhar, conta o marido dela, o agricultor Francimar de Lima, de 41 anos, morador da Vila Horácio, zona rural de Juazeiro do Norte. “Não tem mais aquela história de comer a hora que quer aqui”, ele diz. “Agradeço a Bolsonaro porque foi uma comida a mais na mesa naquele tempo, mas o que ele deu já tirou com tudo caro. Ele dá com uma mão pra tirar com a outra”, reclama.
O agricultor Francimar de Lima e a esposa Maria Jocimar da Silva, com o carro que agora só roda em emergência pela alta da gasolina.
A família de Francimar vive com a ajuda dos programas do Governo, do que planta e da venda do excedente. Ele conta que a energia está atrasada, a plantação neste ano não foi farta e o dilema agora é vender ou não o carro conquistado a duras penas há 10 anos e que agora só roda em situações de máxima emergência. “O que a gente tem neste Governo é dívida. Bolsonaro só quer mudar o nome das coisas que Lula fez, como o Bolsa Família, mas não faz as dele e nem olha pro pobre. Foi Lula que abriu crédito pra eu comprar o carro, e agora não tenho nem o [dinheiro] da gasolina”, queixa-se. “Eu tenho até medo. Bolsonaro diz que vai aumentar o Bolsa Família, mas e se acabar? O que ele diz não se escreve né?”, emenda Maria Jocimar.
Eles esperam que o próximo presidente priorize projetos para o campo e o pequeno agricultor, como linhas de crédito para comprar materiais para a plantação e estímulo à pecuária, o que os permitiria melhorar a renda mensal com seu trabalho. Ambos votaram no petista Fernando Haddad nas últimas eleições e dizem que votarão em Lula ou em quem ele indicar em 2022. “Não queria votar no Lula porque acho que ele não tem mais idade pra cuidar de um Brasil desse jeito que tá não, mas confio nele pelo histórico de tirar gente da pobreza. Bolsonaro acha que agradando os ricos vai ter os pobres com ele”, argumenta Francimar.
Às investidas de Bolsonaro com inaugurações de obras e promessas de aumentar em pelo menos 50% o valor do atual Bolsa Família, Lula reage com a primeira caravana pelo seu berço eleitoral desde que voltou a ser elegível. Sua estratégia neste momento foca na costura de alianças políticas com vistas a 2022 e em encontros com movimentos sociais. O petista está no final da excursão de 11 dias por seis Estados nordestinos e já mudou até seu avatar nas redes sociais para uma imagem em que usa um chapéu de cangaceiro, como quem indica sentir-se em casa. Mas também terá de trabalhar para manter sua ampla vantagem de preferência nas eleições.
“Tem mais gente na disputa”
“A única certeza que eu tenho é que neste presidente que tá aí [Bolsonaro] eu não voto. Lula hoje está em primeiro lugar, mas ainda não tenho 100% de certeza se vou nele”, diz o agricultor Juarez Timóteo, de 52 anos. Da televisão de sua casa no assentamento 10 de Abril, uma comunidade rural a cerca de 25 quilômetros da cidade de Crato, ele acompanha tudo o que acontece no país pela televisão. Acredita que Bolsonaro virou as costas para os pobres e errou em não comprar vacinas logo para combater a pandemia. Também está aborrecido com o “mau exemplo” provocando aglomeração até na vizinha Juazeiro do Norte e diz morrer de vergonha ao assistir a CPI da Pandemia. “Lula ainda vou observar porque foi bom, mas tem mais gente que vai disputar. Ciro Gomes e Cid também ajudaram muito a gente aqui”, diz.
Foi no Governo Lula que a família de Juarez conseguiu uma cisterna para armazenar água da chuva, a casa e uma moto para tanger o gado. “Com este de agora onde a gente anda é só lamentação. Ele disse que ia ajudar o Nordeste. Em quê? Não vi nada ainda. No lugar de ter gastado estes rios de dinheiro em obra e asfalto, devia comprar vacina para diminuir a crise dessa pandemia. A gente aqui no Brasil tem pressa para outras coisas”, reclama ele, que perdeu dois primos com covid-19.
A família de Juarez está dividida entre Ciro, Lula e Bolsonaro.
Na caótica crise brasileira, Juarez não está certo nem se irá mesmo escolher um candidato nas próximas eleições. “Para um presidente ganhar meu voto, eu vou ter que observar muito”, diz, ao lado da filha Vitória, de 18 anos, que vai votar pela primeira vez no ano que vem e diz simpatizar com Bolsonaro. “O Auxílio Emergencial dele foi bom. Não acho Bolsonaro ruim, talvez eu vote nele”, justifica. Com os 1.200 reais do programa no ano passado, a mãe dela, Cirene Ventura dos Santos, realizou o sonho de cimentar todo o piso da casa onde eles moram.
Mas quatro meses depois o valor do benefício caiu para 600 reais e agora está em 250 reais, complicando o orçamento doméstico. Cirene não viu faltar comida à mesa como tantas famílias brasileiras durante a crise, mas precisou voltar a cozinhar à lenha porque já não consegue comprar gás suficiente para usar só o fogão. Ela quer uma estabilidade financeira para realizar um novo sonho, o de construir um alpendre em casa. Acha que o discurso de Bolsonaro está muito distante da realidade deles, com críticas ao comunismo, ataques ao voto eletrônico e defesa às armas. É a única da família que já sabe o número que vai digitar na urna no ano que vem. “Voto 13, em Lula, que no tempo dele a vida era mais fácil. Com fé em Deus o próximo presidente vai ser ele.”