Após meses de lockdown, partes do Sudeste Asiático estão deixando para trás sua política de “Covid zero” e traçando um caminho para conviver com o vírus – apesar dos avisos dos especialistas de que pode ser muito cedo para fazer isso.
A Covid-19 se espalhou pela região nos últimos meses, puxada pela altamente infecciosa variante Delta, com casos subindo abruptamente em julho e atingindo o pico na maioria dos países em agosto.
Agora, governos de países como Indonésia, Tailândia e Vietnã procuram reaquecer suas economias – especialmente a vital indústria do turismo – reabrindo fronteiras e espaços públicos.
Mas os especialistas temem que as baixas taxas de vacinação em grande parte da região e o uso generalizado de vacinas de menor eficácia, incluindo a chinesa Sinovac, possam levar a uma catástrofe.
Yanzhong Huang, pesquisador sênior de saúde global do centro de estudos do Conselho de Relações Exteriores dos Estados Unidos, disse que se as taxas de vacinação não forem altas o suficiente com vacinas de alta eficácia antes que as restrições sejam suspensas, os sistemas de saúde no Sudeste Asiático podem ficar sobrecarregados rapidamente.
“Você vai ver esse pico de casos graves, então vai sobrecarregar as UTIs… leitos, respiradores, vai haver um desafio de falta de capacidade”, disse ele.
Mas para grande parte do público e muitos líderes da região, parece haver poucas opções. As vacinas são escassas e, para muitos países do Sudeste Asiático, é improvável que a vacinação em massa seja alcançada nos próximos meses.
Ao mesmo tempo, quando as pessoas perdem oportunidades de trabalho e ficam confinadas em suas casas, as famílias passam fome.
Jean Garito, operador de uma escola de mergulho na ilha tailandesa de Phuket, disse que pequenas e médias empresas estão desesperadas para que as fronteiras sejam reabertas.
Ele não tinha certeza de quanto tempo o setor de turismo do país poderia sobreviver, acrescentou.
“Se os governos não forem realmente capazes de compensar as empresas por suas perdas no curto e longo prazo, então sim, se eles não reabrirem totalmente, estamos todos condenados”, disse Garito.
Fim da política de ‘Covid zero’
De junho a agosto, muitos países do sudeste asiático introduziram restrições estritas na tentativa de controlar a onda de Covid-19.
A Malásia e a Indonésia impuseram bloqueios em todo o país, enquanto a Tailândia e o Vietnã implementaram bloqueios em regiões de alto risco.
Sob essas restrições, milhões de pessoas foram orientadas a ficar em casa sempre que possível e proibidas de fazer viagens domésticas; escolas foram fechadas, transporte público suspenso e reuniões proibidas.
Fila para a vacinação em Singapura
Desde então, novos casos diários caíram em toda a região, embora ainda permaneçam altos.
De acordo com dados da Universidade Johns Hopkins, as Filipinas estão relatando quase 20.000 casos por dia, com Tailândia, Vietnã e Malásia registrando cerca de 15.000 casos a cada 24 horas.
As taxas de infecção da Indonésia foram as que mais diminuíram – agora, o país relata alguns milhares de casos por dia.
O pico mal passou e as taxas de vacinação são terrivelmente baixas em alguns lugares, mas alguns já governos estão começando a reabrir.
O Vietnã planeja reabrir a ilha turística de Phu Quoc para turistas estrangeiros a partir do próximo mês, de acordo com a Reuters.
As autoridades citaram a pressão econômica para a decisão, com o ministro do turismo dizendo que a pandemia havia “prejudicado seriamente” o setor.
Até agora, menos de 7% da população foi totalmente vacinada, de acordo com o rastreador global de vacinas da CNN – número muito distante dos 70% a 90% citados por especialistas como um requisito para a imunidade de rebanho.
A Tailândia planeja reabrir sua capital, Bangkok, e outros destinos importantes para turistas estrangeiros em outubro, também na esperança de reviver sua indústria turística em crise, que respondeu por mais de 11% do PIB do país em 2019, de acordo com a Reuters.
Cerca de 21% da população tailandesa foi totalmente vacinada, de acordo com o rastreador de vacinas da CNN.
A Indonésia, que inoculou mais de 16% de sua população, também diminuiu suas restrições, permitindo a reabertura de espaços públicos e permitindo que as fábricas voltem à plena capacidade.
Os turistas estrangeiros podem ter permissão para entrar em certas partes do país, incluindo a ilha balneária de Bali, em outubro, de acordo com a Reuters.
A Malásia, que tem uma das maiores taxas de vacinação da região com mais de 56% de sua população totalmente inoculada, reabriu Langkawi – um aglomerado de 99 ilhas e o principal destino de férias do país – para turistas domésticos na semana passada.
Vários estados também começaram a relaxar as restrições para pessoas vacinadas, incluindo jantares em restaurantes e viagens interestaduais.
De certa forma, a rápida reabertura da região reflete a abordagem de “conviver com a Covid-19” em países ocidentais como o Reino Unido e partes dos Estados Unidos, onde a vida diária essencialmente voltou ao normal.
Entre os países do sudeste asiático, Singapura “está totalmente aberta” ao se afastar da política anterior de “Covid zero”, disse Abhishek Rimal, coordenador regional de emergência de saúde da Federação Internacional da Cruz Vermelha.
E embora outros países não tenham feito nenhum anúncio formal, a rápida reabertura sugere que os governos estão avaliando a sustentabilidade de longo prazo da estratégia.
“Tem havido discussões entre cientistas de todo o mundo sobre qual será o destino da Covid no futuro” disse Rimal. “Um cenário possível é que será uma doença endêmica… Estamos nos inclinando para a Covid (ser) parte integrante de nossa vida.”
Perigos de reabrir o país cedo demais
Especialistas alertam, no entanto, que as baixas taxas de vacinação em partes do Sudeste Asiático, incluindo Filipinas, Indonésia e Tailândia, tornarão a reabertura muito mais arriscada do que no Ocidente.
Muitos países ocidentais vacinaram a maioria de suas populações – incluindo o Reino Unido com 65% e o Canadá com quase 70%.
E embora eles ainda estejam relatando casos, com vários relatos de breves picos após a reabertura, o número de mortes e hospitalizações por Covid-19 permaneceu baixo nesses países ocidentais, indicando os benefícios da vacina.
No sudeste da Ásia, as taxas de positividade dos testes também permanecem preocupantemente altas. A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os países mantenham uma taxa de positividade de 5% ou menos por pelo menos duas semanas antes da reabertura – mas esse número é de 20% a 30% em muitos países do Sudeste Asiático, disse Rimal.
“Isso indica claramente que os números absolutos do que estamos vendo não são a verdadeira representação dos casos da Covid-19, por causa da falta de testes e rastreamento de contato”, acrescentou.
“A recente onda de Covid-19 nos ensinou uma coisa: não podemos nos dar ao luxo de baixar a guarda.”
A OMS estabeleceu outros critérios – por exemplo, o órgão global de saúde recomenda que os governos reabram apenas se a transmissão estiver sob controle e se seus sistemas de saúde forem suficientemente capazes de detectar, testar, isolar e tratar os casos.
Alguns dos países que reabriram não atenderam a essas referências – o que significa que “há todas as possibilidades de vermos um aumento da Covid-19”, disse Rimal.
Mas muitos governos no Sudeste Asiático podem não ter muita escolha. O fornecimento de vacinas continua baixo na região, agravado por atrasos repetidos e uma escassez global.
Alguns países demoraram a adquirir as doses, deixando-os despreparados quando a última onda chegou, e alguns países de renda média – incluindo Tailândia e Malásia – são inelegíveis para taxas subsidiadas da iniciativa mundial de vacinas Covax Facility.
Esperar que a demanda global diminua e a oferta aumente também não é realmente uma opção; as vidas e meios de subsistência das pessoas foram severamente afetados por quase dois anos, com consequências potencialmente terríveis se não forem autorizados a retomar.
“Milhões de pessoas estão lutando para atender às suas necessidades diárias”, disse Rimal. “Há uma enorme força de trabalho na Ásia que depende de salários diários, e eles estão sendo afetados por causa desta crise econômica.”
À medida que a pandemia se arrasta, com as comunidades retirando e reimpondo o bloqueio a cada poucos meses, enquanto as famílias passam fome, as pessoas também estão experimentando o cansaço da pandemia.
Deixando de lado a tensão econômica, os governos também enfrentam uma pressão pública crescente para reabrir.
É o “grande dilema” que os cientistas, legisladores e líderes mundiais enfrentam na Ásia, acrescentou Rimal. “Sabemos que as vacinas são uma resposta importante, (mas) não temos acesso a elas, enquanto vemos pessoas sofrendo e enfrentando a perda de empregos.”
É por isso que organizações humanitárias como a Cruz Vermelha pediram quelíderes globais forneçam mais doses de vacinas para países de baixa renda e duramente atingidos no sul e sudeste da Ásia, disse ele.
Mas enquanto isso, se essas nações estão decididas a reabrir de qualquer maneira, só há uma coisa que elas podem fazer: fortalecer todos os outros aspectos de sua resposta à pandemia, como medidas de saúde pública, testes e rastreamento de contatos.
“A menos que façamos isso, veremos definitivamente um aumento de casos nos próximos dias ou semanas”, disse ele.
O desafio das vacinas
Há outra consideração importante que pode dificultar a transição da região para viver com a Covid-19: os tipos de vacinas disponíveis.
Muitos países do Sudeste Asiático confiaram fortemente nas vacinas feitas na China, que geralmente têm uma eficácia menor do que as feitas por empresas ocidentais.
De acordo com a Duke University, a Tailândia comprou mais de 40 milhões de doses do medicamento Sinovac, enquanto as Filipinas e a Malásia têm cerca de 20 milhões cada. O Camboja comprou outros 16 milhões.
Enquanto isso, a Indonésia comprou 15 milhões de doses da vacina Sinopharm, enquanto a Malásia adquiriu outros 5 milhões.
Embora os especialistas geralmente concordem que ter acesso a qualquer vacina é melhor do que a nenhuma vacina, os medicamentos fabricados na China têm um nível de eficácia mais baixo do que as alternativas ocidentais, como as vacinas da Pfizer ou da Moderna.
Estudos brasileiros demonstraram que o imunizante Sinovac tem cerca de 50% de eficácia contra a Covid-19 sintomático e 100% de eficácia contra doenças graves, de acordo com dados enviados à OMS.
A vacina da Sinopharm tem eficácia de cerca de 79% para doenças sintomáticas e hospitalizadas, segundo a OMS.
Em comparação, as vacinas Pfizer e Moderna foram mais de 90% eficazes. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da China, Wang Wenbin, anteriormente rejeitou as críticas sobre a eficácia das vacinas do país como uma “crítica motivada por preconceitos”.
Huang, do Conselho de Relações Exteriores, disse que tentar reabrir enquanto menos da metade da população está vacinada, e usando vacinas menos eficazes, pode causar uma enxurrada de casos que sobrecarregariam os hospitais e até mesmo levaria à reintrodução de restrições.
No entanto, nem todos os países do Sudeste Asiático confiaram na Sinovac ou na Sinopharm. Por exemplo, Singapura, que tem uma das taxas de vacinação mais altas do mundo, com mais de 77% totalmente inoculada, usa predominantemente Pfizer e Moderna.
Outros países começaram a deixar de usar a vacina da Sinovac devido às preocupações sobre sua eficácia. Em julho, a Malásia disse que pararia de usar as injeções chinesas assim que seu estoque de 12 milhões de doses acabasse.
A Tailândia disse no mesmo mês que revacinaria seus profissionais de saúde com o medicamento da Pfizer assim que as doses chegassem, apesar de já tê-los vacinado totalmente com Sinovac.
“Eu acho que se eles conseguirem usar as vacinas altamente eficazes como doses de reforço e permitir que uma porcentagem significativa da população seja vacinada, então certamente isso tornará a reabertura mais justificável”, disse Huang.
Mas para que essa mudança aconteça, a demanda global de fornecimento precisa diminuir, ou as nações ricas com doses suficientes precisam intervir e ajudar – o que não está acontecendo com rapidez suficiente.
“É muito importante que os países de alta renda compartilhem as doses das vacinas o mais rápido possível com os países do Sul e Sudeste Asiático para que possamos sair da pandemia e seguir em frente com uma vida normal”, disse Rimal. “Esta é uma das respostas mais fundamentais que temos.”
Para Garito, o dono da escola de mergulho na Tailândia, a reabertura não pode demorar para acontecer. “Todos nós temos filhos e nós mesmos para alimentar”, disse ele.