A esquerda que teme dizer seu nome: AS CONSEQUÊNCIAS DAS ELEIÇÕES NA VENEZUELA PARA A ESQUERDA NA AMÉRICA LATINA

A forma como o Estado venezuelano exerce a violência e o controle sobre seus cidadãos, ao mesmo tempo que restringe os pilares democráticos que regulam o próprio Estado, apenas desacredita a esquerda e a coloca em uma posição vulnerável para que a direita espalhe mentira.

Mais uma vez, uma panela de pressão está se formando na Venezuela. Assim como no caso Guaidó, no passado, o governo venezuelano enfrenta agora outra crise de legitimidade, parecendo adicionar mais um prego ao seu próprio caixão a cada dia. A forma como Maduro está lidando com a situação lembra regimes ditatoriais, autoritários e totalitários, sacrificando o povo em nome de salvá-lo. Enquanto isso, em toda a América Latina, a esquerda continua a se defender dos ataques habituais, sendo acusada de comunismo e de levar a sociedade à catástrofe (não é esse o cenário atual?).

A situação na Venezuela cria um efeito psicopolítico em que todos parecem ignorar o apocalipse iminente causado pela direita, enquanto esta aponta o dedo para a Venezuela em busca de um bode expiatório. Embora seja verdade que o governo de Maduro mereça a culpa que recebe, o fato é que a direita na América Latina está se aproveitando dessa situação para se consolidar como os que resistem ao “mal comunista” e se apresentam como os defensores da moral e dos princípios. A Venezuela serve como uma desculpa perfeita para minar o restante da esquerda na região, ao mesmo tempo que impõe desafios consideráveis para que a esquerda se afirme e opere de forma política, social e econômica.

Uma coisa é certa: Maduro é o exemplo perfeito de como não se deve administrar um país. O fato de ele ser considerado “de esquerda” (ignorando que seus aliados são países com forte capitalismo de Estado) é apenas uma coincidência, resultado do próprio contexto histórico da Venezuela. No final das contas, o tipo de esquerda que se manifesta ali é aquela ainda presa ao espírito da Guerra Fria, em que o capitalismo é visto como o demônio a ser combatido. No entanto, a realidade atual é muito diferente, e a esquerda precisa repensar suas estratégias a partir desse novo contexto.

O oficialismo venezuelano e os moinhos da Guerra Fria

Desde o início, é importante mencionar que o modelo de esquerda de Maduro está ancorado em um contexto ultrapassado. Isso é evidente na forma como ele conduz o jogo político em nível internacional, destacando a visão do “império” como inimigo, cujas forças estrangeiras malignas supostamente dominam o território, enquanto grandes empresários se expandem sem controle sobre o público e o “povo”. Para entender melhor, basta ouvir os discursos de Maduro, que constantemente retratam a Venezuela como estando em uma guerra constante. Esse “império” inimigo nada mais é do que um significante vazio, uma figura mutável que se adapta às necessidades políticas de Maduro e de seu partido, podendo ser representado por Elon Musk, os Estados Unidos, a União Europeia, a Argentina, entre outros. A esquerda oficial na Venezuela continua acreditando na existência de alternativas reais ao capitalismo no mundo, ignorando o realismo capitalista desenfreado em que estamos imersos.

Essa ideia é crucial porque, ao contrário do século passado, quando ainda era possível vislumbrar alternativas materiais, políticas e econômicas ao capitalismo, a realidade de hoje é muito diferente. O modo de produção neoliberal se enraizou tão profundamente na vida humana que a revolução se tornou inviável. Dessa forma, já não se pode conceber a resistência e a emancipação em termos de luta armada, pois o sistema se articulou de tal maneira dentro dos diversos regimes políticos que se tornou impossível evitar a atuação, a (auto)exploração e a constante aceleração do capital.

O oficialismo venezuelano, de forma ingênua (ou até patética), está lutando contra um gigante imaginário, evocando a famosa cena em que Dom Quixote combate moinhos de vento, acreditando que são gigantes a serem derrotados. Em outras palavras, Maduro exibe uma fantasia paranoica, acreditando que o capitalismo pode ser derrotado, enquanto ignora o fato de que o próprio sistema venezuelano não passa de um servo de outro tipo de mestre capitalista. Nesse processo, emerge um autoritarismo clássico, marcado por elementos de uma distopia futurista, e uma práxis de esquerda que não consegue responder às novas necessidades de um mundo que deve ser pensado além das categorias do “império”. Essa concepção da relação entre esquerda e democracia, marcada pela falta de credibilidade e transparência —um elemento crucial para o fair play político (mesmo no pior da direita)— cria uma cortina de fumaça que obscurece as possibilidades de mudança, não apenas para a Venezuela, mas para todo o projeto de esquerda na América Latina.

Contra-ataque: a resistência é um ato de direita?

Nesse contexto, os antigos adversários, a direita em suas diversas formas de expressão, parecem estar retomando o controle. Observando atentamente o panorama político da América Latina além do Brasil, percebe-se que as direitas estão capitalizando o espetáculo do oficialismo venezuelano para difundir a mensagem, cada vez mais aceita, de que as esquerdas não apenas são incapazes de administrar um país, mas que estão sempre associadas à pobreza e ao mal-estar. Trata-se de uma estratégia clássica e eficaz para disseminar o medo, potencializada por situações como a da Venezuela. Nesse cenário, emergem campeões populistas messiânicos e midiáticos que se posicionam como a resistência contra a suposta hegemonia comunista que ameaça se instaurar na sociedade. Exemplos claros dessa tendência são figuras como Javier Milei e Jair Bolsonaro.

Aqui fortalece-se a ideia equivocada de que a direita: 1) é uma minoria não apenas na América Latina, mas globalmente; 2) por ser uma minoria, age como um contra-discurso que “resiste” à força hegemônica que pretende dominar o mundo; e 3) que sua resistência visa proteger valores, princípios e métodos corretos para salvar o mundo da “decadência” em que se encontra. Dentro dessa perspectiva, a direita latino-americana não hesita em reverter o discurso da luta pela dignidade, utilizando uma polarização radical para posicionar-se como o “lado certo” da história e, a partir daí, reassumir sua sempre presente hegemonia política, econômica e social.

A direita na América Latina recorre à má administração do oficialismo e à sua interpretação errônea do que significa ser de esquerda para desestabilizar qualquer tentativa da esquerda na região de conduzir uma luta política, social e econômica pela igualdade e justiça social. Assim, a resistência perde seu caráter de combate a um regime autoritário e injusto, substituindo-o pela derrubada de um mestre para estabelecer outro, apenas por meios suaves e sedutores, em vez de coerção. A rebelião da direita se revela como a tirania do mercado, disfarçada pela ideia de liberdade para todos, mas que, uma vez o rei caia, apenas exclamará: “Viva o rei!” Portanto, o interesse da direita pela Venezuela não deve ser visto como uma vontade piedosa de promover uma mudança favorável, mas como uma luta de interesses que, enquanto na Venezuela se resolve por meios violentos, no restante da América Latina é conduzida de forma democrática.

O esforço por outro futuro: o papel da esquerda na América Latina

Nesse contexto de ilegitimidade política, crise da democracia e negligência social, onde não há garantias para a reivindicação, surge a necessidade de a esquerda ocupar um espaço no espectro político latino-americano. Esse tipo de esquerda não busca seguir o modelo totalitário e autoritário, mais próximo do stalinismo do que de uma forma democrática de governo, mas pretende responder às novas necessidades de um mundo dominado pelo realismo capitalista e sua capacidade de cancelar o futuro.

A luta, portanto, é no campo micropolítico, o que implica pensar na forma como os proletários contemporâneos —que não podem ser compreendidos a partir da interpretação marxista tradicional, mas sim a partir do número multifacetado de dimensões que compõem o indivíduo em sua vida cotidiana atual, especialmente aquelas associadas à sua auto-percepção como ser humano: sua relação com o tempo, seus familiares, seus desejos e formas de se relacionar com o mundo— se posicionam. Isso exige uma abordagem da disputa política em sua amplitude e não apenas como a imposição de um modelo hegemônico com uma cor diferente e disfarçado de discurso marxista.

A forma como o Estado venezuelano exerce a violência e o controle sobre seus cidadãos, ao mesmo tempo que restringe os pilares democráticos que regulam o próprio Estado, impossibilitando a garantia da transparência e dos freios e contrapesos que dariam legitimidade às conquistas da esquerda, apenas desacredita a esquerda e a coloca em uma posição vulnerável para que a direita espalhe a conhecida mentira de que tal governo só leva à pobreza, à decadência e à morte. Ao longo do caminho, os cidadãos são inclinados a ver a direita como uma opção válida, um mal necessário, que garante um sofrimento humano, ignorando o fato de que, na Venezuela, assim como no Brasil ou na Colômbia, realmente existe um regime administrativo de ordem capitalista que sofre mutações constantes para manter a concorrência, o bem-estar para poucos e a liberdade entendida como desamparo como eixos estruturais da vida.

Enquanto isso, o restante da esquerda na América Latina enfrenta a má imagem gerada por um governo como o de Maduro, que vê as pessoas como meros danos colaterais para manter viva uma luta há muito tempo perdida contra o capitalismo. Em vez de reconhecer a necessidade de uma nova ordem que deve atingir os indivíduos em sua singularidade e constituição subjetiva, em sua luta micropolítica e em sua fraqueza diante de um sistema opressivo, o governo ignora completamente essas questões. Não é surpreendente que o fato de se identificar como esquerdista esteja se tornando cada vez menos frequente. Existe um estigma associado ao rótulo de esquerdista, alimentado por casos como esse, em que os velhos ortodoxos ainda não compreendem que o mundo mudou e que, para habitar o futuro, é necessário atuar além do realismo capitalista.

Juan David Almeyda Sarmiento é estudante de doutorado em filosofia da Universidade Federal de São Carlos. Pesquisador e professor da Universidade Industrial de Santander (Bucaramanga-Colômbia), assim como integrante de vários grupos de pesquisa do Brasil.

 

 

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(Da Redação com Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

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