A América Latina contemporânea é o melhor exemplo das alternativas e dilemas que o mundo atual enfrenta. Em poucas décadas, o continente passou por diversas fases: de um período desenvolvimentista às ditaduras militares, governos neoliberais, sendo a única região do mundo a ter governos antineoliberais, até a viver processos de restauração neoliberal em alguns países.
A região transitou por modelos hegemônicos diferenciados, até mesmo radicalmente contraditórios, revelando uma tensão e um dinamismo permanentes entre as forças fundamentais que se confrontam em todo o continente e, na verdade, em todo o mundo contemporâneo. Dessa forma, a América Latina se tornou o melhor laboratório de experiências políticas que temos hoje no mundo. Refletir sobre esses caminhos oferece a melhor pista para decifrar a história contemporânea e as perspectivas para o século XXI.
Por que usar a expressão “enigma” ao falar de Lula e da América Latina? Após o Brasil e a América Latina terem percorrido um doloroso caminho em direção ao neoliberalismo, adaptando-se à era atual do capitalismo, que parecia uma tendência irreversível, de que maneira foi possível resistir a ela?
Para decifrar esse enigma, é indispensável recorrer ao potencial que apenas a dialética, captando a realidade com suas contradições concretas, permite. A direita, com seu dogmatismo liberal, e a ultraesquerda, com seu sectarismo, não conseguem apreender as condições históricas concretas que possibilitaram a reação latino-americana, mesmo no contexto da persistente hegemonia mundial do neoliberalismo.
Lula faz parte desse enigma, assim como outros líderes do continente, como Hugo Chávez, Néstor e Cristina Kirchner, Evo Morales, Rafael Correa e López Obrador.
Para entender o surgimento fulminante do neoliberalismo, suas contradições e limites, foi necessário reconstituir as grandes transformações ocorridas no mundo nas últimas décadas do século passado. O neoliberalismo emergiu após o fim da URSS, o término do ciclo expansivo do capitalismo e a crise do Estado de bem-estar social, no contexto de um longo ciclo recessivo do capitalismo e da irrupção de uma ideologia liberal de mercado.
Não considero que as crises atuais e os retrocessos em um ou outro país latino-americano configurem um esgotamento do ciclo de governos pós-neoliberais na América Latina. Enquanto o capitalismo seguir em seu ciclo neoliberal, os governos antineoliberais continuarão a ter relevância.
A América Latina, devido à sua inserção internacional específica, especialmente no século XX e no começo do século XXI, tornou-se uma referência fundamental para a esquerda em escala mundial. Seus líderes se destacaram não apenas por representarem alternativas ao neoliberalismo, mas por colocarem em prática essas alternativas em governos que promoveram transformações fundamentais em seus países, tornando-se paradigmas para a esquerda mundial.
Pelas características que a esquerda latino-americana assumiu, podemos recordar a expressão de Lênin sobre o “elo mais fraco da cadeia” neoliberal e, talvez, do próprio capitalismo. Daí a centralidade da análise da América Latina para compreender a disputa entre o neoliberalismo e o pós-neoliberalismo e entender o destino do mundo no século XXI.