Os desafios dos curdos iraquianos no pós-Estado Islâmico

Em 9 de junho, Haider al-Abadi, o primeiro-ministro iraquiano, chegou a Mosul para parabenizar as forças armadas pela liberação da cidade. Mosul havia sido conquistada pelo chamado Estado Islâmico (EI) em 2014 e serviu como sua capital iraquiana. Esta vitória significativa ainda não é o fim do EI no Iraque, no entanto, tanto naquele país como na Síria, seu domínio territorial diminuiu largamente (cerca de 60% desde janeiro de 2015), sendo provável que continue. O vácuo de poder que emergiu deste rápido declínio acentuou a concorrência entre as numerosas partes no conflito – forças regulares de Estados regionais e grande potências, assim como várias milícias que muitas vezes atuam como seus proxies – para controlar os antigos territórios do EI. Logo, as estruturas regionais de conflito que foram moderadas pela necessidade urgente de lidar com a ameaça comum representada pelo EI retornam ao primeiro plano.

Os curdos iraquianos, que desde 1991 construíram um Estado de fato bem desenvolvido no norte do Iraque, já perceberam a oportunidade pós-EI. Recentemente, o Governo Regional Curdo (KRG, na sigla em inglês) anunciou que realizará um referendo de independência em 25 de setembro nos territórios que atualmente controla. Embora a complexa situação pós-EI no Iraque possa, consequentemente, constituir uma oportunidade histórica única para alcançar seu objetivo de longo prazo de independência, ela também acarreta obstáculos relevantes aos curdos iraquianos.

Em particular, três desafios devem ser abordados para a região se aproximar do objetivo de ser um Estado soberano: resolver uma crise política doméstica paralisante; chegar a um acordo com Bagdá sobre os territórios em disputa localizados além da fronteira federal do Curdistão iraquiano, que atualmente são controlados pelas forças curdas, os Peshmerga; e ganhar pelo menos algum apoio internacional para sua independência.

O Partido Democrata do Curdistão (KDP, na sigla em inglês), liderado por Masoud Barzani (que também é o presidente do Curdistão iraquiano desde 2005), juntamente com a União Patriótica do Curdistão, comandada por Jalal Talabani, foram os dois principais partidos curdos na região nas últimas décadas. Desta forma, suas relações têm sido frequentemente conflituosas, marcadas por disputas por poder e recursos. No entanto, após o fim da Guerra Civil Curda Iraquiana (1994-1998), os dois competidores transformaram suas relações e passaram a cooperar. Essa coalizão de construção de Estado surgiu e estabilizou-se como resultado de incentivos exteriores oferecidos por potências externas, principalmente EUA e Turquia.

No momento, contudo, o Curdistão iraquiano é assombrado por uma crise política interna e o parlamento não se reune desde outubro de 2015. O longínquo duopólio KDP-PUK já havia sido enfraquecido nas eleições curdas iraquianas de 2013, quando o PUK perdeu considerável apoio, chegando em terceiro nas urnas, atrás de KDP e Gorran (um novo partido que se separou do PUK). Embora o KDP tenha inicialmente organizado um governo de coalizão com esses três partidos, a aliança se deteriorou após a intensificação de um conflito sobre a extensão do mandato presidencial de Barzani e o KDP expulsou o Gorran do governo. Em 2016, PUK e Gorran concluíram uma aliança contra o poderoso KDP, que atualmente domina o governo regional curdo e controla as lucrativas exportações de petróleo.

Em vista dessas disputas políticas internas, o referendo de independência também é uma tentativa do KDP de impulsionar uma causa comum para resolver as diferenças entre as partes rivais. E parece que essa abordagem foi, ao menos parcialmente, bem sucedida. No final de 2016, o conflito em relação às exportações de petróleo do KRG era tão grave que círculos do PUK visavam até mesmo dividir o Curdistão. Entretanto, desde abril de 2017, o PUK se encontrou diversas vezes com o KDP para discutir um possível referendo. E isso poderia potencialmente reativar a colaboração de duopólio que explica o surgimento do Curdistão iraquiano.

No entanto, muitas vozes no PUK são, assim como o Gorran, críticas ao referendo. Elas exigem que o parlamento paralisado se reúna antes do referendo ocorrer. O presidente Masoud Barzani, cujo mandato expirou há dois anos, de acordo com seus oponentes, anunciou a intenção de não concorrer às próximas eleições previstas para novembro. Isso pode contribuir para resolver as crises políticas internas, uma vez que a unidade curda iraquiana é primordial em um ambiente regional que conta com a desunião para rejeitar reivindicações curdas.

Devido à sua campanha militar de sucesso contra o EI, os curdos iraquianos poderiam expandir seu território em cerca de 40%. De importância crucial para a independência e a viabilidade econômica curda iraquiana é a cidade de Kirkuk, rica em petróleo. Agora que os curdos iraquianos ocupam de fato esses territórios em disputa, eles procuram mantê-los e o KRG pretende inclui-los no referendo da independência. O argumento curdo segundo o qual os esforços militares contra o EI deve ser compensado é recebido com pouca simpatia em Bagdá, em especial quando se trata de uma propriedade chave como Kirkuk.

Embora o ímpeto sobre este tema recaia com os curdos, pois eles atualmente controlam esses territórios, sua união é primordial para a asseveração de suas reivindicações. Desde que os curdos iraquianos conquistaram Kirkuk em 2014, o controle de seu petróleo não foi uma questão espinhosa apenas entre Irbil e Bagdá, mas também entre o KDP e o PUK.

Barzani enfatizou que qualquer movimento para a independência seria buscado dentro de negociações com o governo iraquiano. No entanto, ele também destacou que o resultado do referendo seria implementado, seja qual for. Em 2005, um referendo não oficial de independência foi realizado no Curdistão iraquiano e 99% dos cerca de 2 milhões de votos apoiaram um Estado soberano.

Garantir o apoio eleitoral à independência não é, portanto, um problema. Mas conquistar apoio externo é. Até agora, os EUA, a Rússia, o Iraque e nenhum Estado regional sinalaram alguma abertura para um Curdistão independente, exceto por Israel. Como uma entidade sem litoral, o Curdistão iraquiano não é viável sem o apoio regional, já que, caso contrário, colapsaria economicamente. Na última década, a Turquia foi o principal parceiro econômico do KRG. O cálculo de Barzani parece contar com Ankara para tal passo, mas até agora não há sinal de apoio turco à independência.

Dos três grandes desafios discutidos, conquistar apoio internacional à independência parece ser o mais difícil de enfrentar para os curdos iraquianos. Pode haver um cenário, caso o Iraque mostre severas tendências fragmentárias, em que Ankara possa preferir um Estado cliente curdo iraquiano como tampão contra um Iraque dominado por xiitas. Em geral, no entanto, um Curdistão iraquiano independente parece improvável atualmente.

Caso, contudo, os curdos iraquianos consigam superar sua crise doméstica e unificar suas reivindicações, a situação atual é potencialmente favorável. Se eles joguem suas cartas corretamente, o referendo de independência e alguns dos territórios conquistados poderiam ser instrumentais como peças de negociação para integrar ao menos alguns territórios adicionais à área do KRG, ou talvez ganhassem um statusconfederado dentro do Iraque.

 

Com Carta Capital

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