Fui apresentado aos alimentos processados pela primeira vez na infância, na zona rural do Canadá, onde cultivávamos 90% do que comíamos em nossa propriedade de 3 hectares.
Depois de um verão sem preocupações, pegando vagalumes, capturando sapos e colhendo frutas do pé, o final de agosto marcou o início da preparação para o inverno.
Na umidade sufocante do verão de Ontário, debruçados sobre móveis de cozinha de vinil dos anos 1970, nós cortávamos, descascávamos, fervíamos e escaldávamos — processando todos os produtos cultivados na horta para que nos alimentassem durante o longo e frio inverno.
No entanto, os alimentos processados hoje em dia têm uma conotação muito mais negativa.
A expressão evoca imagens de lanches semelhantes a isopor cobertos de “queijo” ou refeições que pedem para “adicionar apenas água” com sachês de “sabor” suspeitos; estes são os alimentos ultraprocessados.
Mas será que é justo tratar todos os alimentos processados com o mesmo desdém?
Esquecemos que as inovações no processamento de alimentos também ajudaram a melhorar a nutrição, reduzir o desperdício de alimentos e nos proporcionar mais tempo livre.
É muito mais complexo do que afirmar que todos os alimentos processados são ruins. Alimentos processados mudaram, para melhor ou para pior (e provavelmente ambos), nossa relação com a comida. E, muito antes disso, nos moldou como espécie.
Nosso parente hominídeo, o Homo habilis, que viveu entre 2,4 milhões e 1,4 milhões de anos atrás, carrega a primeira evidência do processamento de alimentos. Diferentemente de seus predecessores evolutivos, o habilis tinha dentes relativamente pequenos.
Acredita-se que essa tendência evolutiva só poderia ter começado se o alimento estivesse sendo manipulado antes de chegar à boca.
Martelar as raízes com pedras ou fatiar a carne em tiras finas para torná-la mais fácil de mastigar pode significar cerca de 5% menos mastigação.
Com menos pressão no aparelho de mastigação — mandíbulas, músculos e dentes—, o corpo pode redirecionar esses tecidos energeticamente dispendiosos para outro lugar, fazendo com que o rosto fique menor em relação ao tamanho total do crânio.
O Homo erectus (1,89 milhões de anos – 108 mil anos atrás) e o Homo neanderthalensis (400 mil – 40 mil anos atrás) tinham dentes muito menores do que se poderia prever com base no tamanho de seus crânios.
A evolução só poderia favorecer essa redução no tamanho dos dentes se a comida tivesse se tornado mais fácil de mastigar, e isso provavelmente só foi alcançado por meio do processamento térmico — o cozimento.
Alimentos cozidos requerem 22% menos músculos para serem mastigados e podem liberar energia (calorias) que, de outra forma, seriam inacessíveis no produto cru.
Evolução cerebral
Além de indiscutivelmente proporcionar a nossos ancestrais uma tendência a rostos pequenos e corpos grandes, os alimentos processados levaram a um ganho significativo de tempo. Menos tempo gasto na mastigação deixa a boca livre para desenvolver uma linguagem oral complexa.
A energia poderia ser direcionada para o crescimento de um cérebro maior, em vez de um mecanismo pesado de mastigação, e a comida cozida alimentava esse cérebro faminto por calorias.
Quando digo que os alimentos processados ajudaram a nos moldar como espécie, falo literalmente.
Mas eles continuam a fazer isso — e isso talvez seja mais preocupante. Alimentos ultraprocessados têm sido associados ao nosso tamanho corporal cada vez maior, e nossa dieta cozida e macia é, em última análise, a culpada pelo desalinhamento dos dentes.
Rosto pequeno, corpo grande, dentes tortos — talvez esta não seja uma tendência que desejamos manter.
O que levou nossos primeiros ancestrais a processar alimentos — a preservação — continua sendo o principal fator por trás do processamento de comida hoje.
Avanços na tecnologia significam que agora podemos congelar rapidamente a colheita no auge da estação, logo depois de ter sido extraída da terra, retendo os nutrientes essenciais até que sejam liberados novamente meses depois em algum fogão a milhares de quilômetros de onde o produto foi cultivado.
No entanto, houve muitos outros fatores ao longo do caminho que forçaram a inovação alimentar.
Quando mais marinheiros morreram de desnutrição do que em combate durante a Guerra dos Sete Anos e as Guerras Napoleônicas, a pressão para encontrar novas maneiras de conservar os alimentos impulsionou o desenvolvimento e a adoção generalizada de enlatados.
Em 1912, uma mudança na legislação do Reino Unido estabeleceu que a classe média desse aos empregados que trabalhavam na casa meio dia de folga por semana; isso levou às primeiras versões das “refeições prontas”, uma vez que as donas de casa de classe média de repente se viram obrigadas a preparar o jantar uma vez por semana.
Influência dos conflitos
Foi a guerra novamente (desta vez, a Segunda Guerra Mundial) que limitou a disponibilidade de metal proveniente da China, interrompendo a produção de enlatados e abrindo o mercado para os alimentos congelados.
Um excesso de oferta de peru na década de 1950 deu origem à invenção dos pratos congelados.
O desperdício de comida levou até um fazendeiro californiano na década de 1980 a revolucionar o lanche saudável. Cansado de ver mais de 360 toneladas de cenouras esteticamente feias sendo desperdiçadas a cada ano, ele comprou um cortador industrial e começou a descascá-las e cortá-las em pedaços convenientes de 5 cm.
Foi o início da revolução da mini-cenoura, que impulsionou o consumo de cenoura nos Estados Unidos em 33%.
Guerra, desnutrição, oferta e demanda, desperdício de alimentos — todos estes são motores de inovação, assim como sustentabilidade e segurança alimentar.
Outro fator importante por trás da inovação alimentar na sociedade moderna é a conveniência. Em apenas 60 anos, o tempo gasto na preparação do jantar no Reino Unido passou de 1,5 hora para pouco mais de 30 minutos.
Também houve uma mudança dramática na unidade familiar nesses 60 anos. O número de mulheres que trabalham fora aumentou significativamente, e a quantidade de famílias monoparentais triplicou.
Não é de se estranhar que as pessoas não estejam dispostas a passar uma hora e meia na cozinha preparando uma refeição com as crianças em seus calcanhares após um longo dia de trabalho.
No entanto, as famílias em geral ainda conseguem incluir na rotina quase 4 horas de televisão por dia (o que aumentou para mais de seis horas durante o lockdown imposto pela pandemia de covid-19).
Portanto, talvez a gente precise ser honesto sobre até que ponto temos tempo para cozinhar ou se escolhemos gastar nosso tempo fazendo coisas diferentes.
Não é apenas a razão pela qual processamos os alimentos, mas como os processamos, que mudou drasticamente com o tempo. A fabricação de queijos é um excelente exemplo, já que os humanos fazem isso há pelo menos 10 mil anos.
A primeira investida na fabricação de queijos provavelmente aconteceu por acidente. O leite que era levado em um saco de pele feito do estômago de um animal esquentou ligeiramente, e as enzimas remanescentes no saco fizeram o leite coalhar.
Ou talvez o conteúdo estomacal de um animal lactante abatido tenha sido explorado, e alguma alma corajosa tenha decidido provar o leite coalhado.
Esses primeiros consumidores aventureiros teriam notado que a coalhada não tinha os mesmos efeitos nocivos que o leite cru (a maioria dos adultos na época seria intolerante à lactose). E os laticínios se tornaram uma fonte básica de proteína.
Apenas 8,7 mil anos depois, havia aproximadamente 700 tipos diferentes de queijo sendo produzidos em todo o mundo. De cheddars envelhecidos em cavernas a bries macios, de fetas frescos ao chhurpupu do Himalaia feito de leite de iaque que pode durar 20 anos se armazenado corretamente.
Então, ao longo dos 200 anos seguintes, conseguimos pegar uma boa parte dessa diversidade e transformá-la em uma aproximação monótona produzida em massa da coisa real.
A industrialização fez com que o leite de várias fazendas fosse amalgamado, perdendo o sabor distinto de cada fazenda e de cada estação, levando ao desaparecimento do produtor de queijo da fazenda.
Os fabricantes passaram a privilegiar um produto mais consistente, com menos gordura e que pudesse ser feito em menos tempo e com menos dinheiro.
Eles retiravam o creme da superfície para transformá-lo em produtos de valor mais alto e, ao perder a rica cor amarela do queijo, começaram a adicionar suco de cenoura ou calêndula para recuperá-la.
Os fabricantes adicionaram enzimas ao leite para acelerar o tempo de maturação.
Na década de 1950, a cromatografia gasosa permitiu que os compostos aromáticos associados a um queijo maturado fossem analisados, isolados e identificados.
Isso possibilitou aos cientistas de alimentos começar a realmente alterar o processo de fabricação dos queijos — aprimorando os sabores por meio da adição de aminoácidos específicos para atingir um sabor forte em menos tempo.
A ciência alimentar acabou usando enzimas e compostos aromáticos para criar um queijo que era tão barato de produzir que se tornou um ingrediente econômico para outros fabricantes de alimentos.
Os queijos enzimaticamente modificados podem conferir um verdadeiro sabor de queijo a qualquer alimento, com muito pouco produto lácteo caro envolvido.
Mas isso levanta a questão de qual deve ser o limite — a partir de que ponto se torna uma enganação?
A série Beyond Natural, da BBC Future, analisa os alimentos processados sob diversas perspectivas.
Dos aditivos escondidos em alimentos saudáveis até os processos vistos na própria natureza, a série leva os leitores aos bastidores de um dia na vida de um cientista alimentar, além de oferecer conselhos práticos sobre como ler os rótulos dos alimentos.
Também reconhece a complexidade do tema e ajuda a desafiar as percepções sobre alimentos processados.
Como consumidores, temos a obrigação de estar informados e fazer com que os fabricantes saibam o que consideramos aceitável (e quando sentimos que passaram do limite) por meio do nosso poder de compra.
As inovações no processamento de alimentos podem ajudar a resolver a insegurança alimentar, reduzir o desperdício de alimentos e diminuir os impactos ambientais da produção de alimentos — ou colocar mais dinheiro no bolso dos fabricantes.
(Da Redação com BBC News)