No último dia 26, o governo federal promoveu o lançamento conjunto da Política Nacional de Transição Energética (PNTE), Resolução nº 5 de 26 de agosto de 2024, e do decreto do Gás para Empregar (nº 12.153/2024).
O GT Clima e Energia do Observatório do Clima, rede formada para discutir o problema do aquecimento global no contexto brasileiro, e a Coalizão Energia Limpa, que atua pela defesa de uma transição energética socialmente justa e ambientalmente sustentável, expressam preocupação com as limitações, contradições e os impactos negativos dessas iniciativas. Embora ambas também reconheçam e valorizam os esforços governamentais para estabelecer novas políticas que promovam um futuro mais sustentável, equilibrando o desenvolvimento econômico e socioambiental.
Em primeiro lugar, ainda que se tratem de matérias para o desenvolvimento do setor energético brasileiro, chama a atenção a ambiguidade dos objetivos de cada proposta. O PNTE estrutura a Política Nacional de Transição Energética, que pressupõe a descontinuidade do uso de combustíveis fósseis. Já o Gás para Empregar estabelece condições para o desenvolvimento da infraestrutura e do mercado do gás, pressupondo sua manutenção no sistema no médio e no longo prazos.
Política Nacional de Transição Energética (PNTE)
A PNTE não disse a que veio. Em um momento em que os olhos se voltam para o Brasil, com a presidência do G20, em 2024, e do Brics e da COP30, em 2025, a política carece de conteúdo e de ambição, relegando a segundo plano a urgência climática e mantendo a sociedade civil à parte do processo.
O texto da Resolução traz poucas diretrizes e mecanismos. Define que haverá um Plano Nacional de Transição Energética (Plante), mas de forma genérica como explicitado no parágrafo 1º do artigo 6º: “Para cumprir com seus objetivos, o Plante deverá contemplar as ações existentes e propor novas ações alinhadas com seus eixos estratégicos, de forma a sinalizar ajustes nos planejamentos que tratam da transição energética”. Além das ações existentes, atentamos para a necessidade de proposição de novas ações ainda não contempladas em programas do governo. Um exemplo é a regulação do armazenamento de energia, ferramenta tecnológica indispensável para o apoio ao crescimento de renováveis e descontinuidade das termelétricas no sistema elétrico brasileiro.
No caso da representatividade social, o parágrafo 3º do artigo 12 diz que “o Fonte (Fórum Nacional de Transição Energética) deverá ter uma composição tripartite, com representantes governamentais, da sociedade civil e do setor produtivo, considerando critérios de representatividade regional, racial, étnica e de gênero”. Espera-se que a experiência com a participação da sociedade civil no CNPE não seja repetida, quando a cadeira ficou temporariamente vazia por anos até ser ocupada por um representante de uma empresa atuante no setor elétrico, e que a voz da sociedade tenha peso igual ao dos demais integrantes.
Em relação às definições gerais de transição energética contidas no artigo 2º, o inciso II define: “Transição Energética Justa e Inclusiva – transição energética comprometida com a promoção da equidade e da participação social, minimizando impactos negativos para as comunidades, trabalhadores, empresas e segmentos sociais vulneráveis às transformações no sistema energético, maximizando as oportunidades de desenvolvimento socioeconômico, de aumento de competitividade do setor produtivo e de combate às desigualdades e à pobreza, nos níveis internacional, regional e local”. Chama a atenção o fato de se buscar minimizar, ao invés de não incorrer em impactos de empreendimentos energéticos sobre comunidades vulneráveis.
Do mesmo modo preocupante, o seu artigo 2º, no inciso IV, define a pobreza energética como “situação em que domicílios ou comunidades não têm acesso a uma cesta básica de serviços energéticos ou não têm plenamente satisfeitas suas necessidades energéticas”, mas não qualifica o que é a cesta básica de serviços energéticos ou mesmo quais são as necessidades energéticas basilares para garantir equidade e justiça no acesso à energia. Tampouco são previstos mecanismos para monitoramento da questão no Brasil, ou alinhamento entre os programas federais para combater a questão. Falta visão do impacto da dimensão energética na orientação das políticas setoriais.
O artigo 3º trata das diretrizes da PNTE e o inciso IV detalha: “promover a competitividade do setor de energia para a oferta a preços acessíveis”. A oferta de preços acessíveis não traz menção ao caso de combustíveis fósseis. Ainda que a acessibilidade de preços de tarifas de eletricidade e combustíveis para transportes ou cocção representem um fator essencial para o bem estar social, é importante lembrar que a continuidade de subsídios para essas fontes supera em muito o montante destinado a energias renováveis e que a continuidade desse estímulo não resultará na transição do uso de combustíveis.
Apesar de detalhar um pouco mais a estrutura do Plante e do Fonte, a avaliação fica prejudicada ao não termos acesso a orçamento e cronograma. Especialmente neste segundo ponto, o cronograma determinará se a transição será efetivamente feita ou se o aumento da participação de fontes renováveis na matriz energética conviverá com a perpetuação da indústria de combustíveis fósseis. Se todas as definições ausentes na política serão definidas no plano, quanto antes a discussão sair das salas do Ministério de Minas e Energia e passar para debate público, melhor. Dessa forma, aguardamos a publicação do conteúdo completo do Plano Nacional de Transição Energética (Plante).
Decreto do Gás para Empregar
No caso do Gás para Empregar, o decreto traz como propostas endereçar o planejamento integrado entre a oferta e a demanda do gás, reduzir o custo da infraestrutura para seu transporte e reduzir o volume de reinjeção atualmente praticado. A expectativa do mercado do gás é que os aprimoramentos – que também incluem a revisão das atribuições de ANP e EPE enquanto órgãos regulador e planejador – aumentem o acesso ao gás e consequentemente seu preço, ponto constante de crítica por parte das indústrias consumidoras do combustível. Novamente, se por um lado a competitividade do gás é um fator importante para o desenvolvimento econômico e social, e suas emissões sejam inferiores à média de outros combustíveis fósseis, o aumento de sua produção e consumo inevitavelmente atrasarão a transição energética brasileira.
A expansão da infraestrutura pretendida pelo mercado do gás, além do uso industrial, pressupõe o aumento do uso de gás em termelétricas para justificar tal demanda. Entendemos que o uso de térmicas é relevante para o fornecimento de potência em situações de pico, mas sua transição para outras modalidades que podem prover esse serviço, como sistemas de armazenamento por baterias ou hidrelétricas reversíveis, deve ser planejada e implementada no curto prazo.
Ainda sobre o programa, o Gás para Empregar restringiu a participação de ambientalistas e da sociedade civil durante os debates de sua formulação, prática contrária ao processo de formulação de políticas públicas. Criado com o propósito de subsidiar o CNPE na proposição de medidas e diretrizes, o Grupo de Trabalho do Programa Gás para Empregar (GT-GE) foi composto por representantes indicados pelo Ministério de Minas e Energia, que o coordenou, dos Ministérios da Fazenda e do Meio Ambiente e Mudança do Clima, entre outros ministérios, do BNDES, da ANP, da PPSA e da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). A critério do GT-GE, representantes de órgãos e entidades públicas e privadas do setor de gás natural e do meio ambiente poderiam ser convidados para participarem das reuniões e prestarem assessoramento. No entanto, em seus meses de trabalho, entre maio de 2023 e agosto de 2024, houve apenas dois dias de reuniões públicas (nos dias 31/10 e 01/11) e algumas reuniões bilaterais das quais a sociedade civil não teve conhecimento, uma vez que desde janeiro deste ano o site oficial do programa não foi atualizado com a publicação de documentos ou atas de reuniões.