Entenda: AS CÂMERAS ABERTAS DA AMÉRICA LATINA

Com exibição de filmes online, Santiago Wild Film Festival se propõe a apresentar um panorama do cinema ambiental latino com destaque para as produções regionais.

A América Latina – e especialmente o continente sulamericano – é, sabidamente, megabiodiverso. É aqui que encontramos a maior floresta tropical do mundo (a Amazônia), além de muitos outros biomas e ecossistemas únicos, que concentram grande parte da biodiversidade mundial. Todas as histórias e belezas naturais da região têm sido tema para filmes e séries ao redor do mundo, majoritariamente tocados por diretores, produtores e veículos da Europa e Estados Unidos. Quem nunca se deparou com um belo documentário da BBC sobre alguma espécie nativa da América do Sul?

O livro As veias abertas da américa latina de Eduardo Galeano, uma “bíblia” da esquerda latina, debate o colonialismo e exploração econômica do Norte global para a região. Tomo emprestado suas reflexões para fazer um paralelo sobre a produção audiovisual socioambiental e quais as narrativas e pontos de vista predominantes. 

É com esse intuito de promover a descolonização de nossos olhares que os festivais de cinema latinoamericanos estão abrindo cada vez mais espaço para produções regionais. A partir desta quinta-feira, dia 23 de março, até 2 de abril, o Santiago Wild Film Festival dará mais uma contribuição nessa direção, com uma seleção especial de filmes produzidos na América Latina e promovendo a indústria na região. “O festival busca obviamente massificar, educar e alcançar com nossos filmes o maior público possível”, afirma Martín del Río, CEO de Ladera Sur, produtora do festival. 

“Por outro lado, buscamos potencializar a indústria do cinema de história natural e de meio ambiente na região, pois a maioria dessas histórias foram contadas por produções do norte [global], e queremos desenvolver os talentos desde o sul [global]”, completa. 

Cartaz da terceira edição do festival. Divulgação.

Essa é a 3edição do festival, que tem um histórico com ares de melodrama latino-americano. Quando estava tudo pronto para a realização da primeira edição em 2019, que aconteceria em Santiago (Chile) justamente pela realização concomitante da 25a Conferência das Partes da ONU (COP 25), o país entrou em convulsão social e a COP foi transferida para Madrid (Espanha). Os realizadores resolveram então adiar o festival para Março de 2020 e, dessa vez, esbarrou no início da pandemia de Covid-19, obrigando um novo adiamento do festival, que só ocorreu em agosto daquele ano e totalmente online. 

O “final feliz” dessa história é que o formato online possibilitou que pessoas de diversos países acompanhassem (em seus respectivos lockdowns) o festival. “Nos demos conta de que a versão online foi vista não somente no Chile, mas também no Peru, Colômbia, Argentina, Brasil, México e vários outros países. No ano seguinte fizemos a convocatória não mais apenas para filmes chilenos, mas para toda a região e recebemos por volta de 200 documentários de todos os lados”, conta a CEO. 

A edição de 2023 traz 20 filmes finalistas que poderão ser assistidos de forma gratuita e online. Entre eles está o filme O Escultor de Pássaros, do brasileiro Felipe Rosa, um curta metragem que conta a história do entalhador Eloir, artesão que faz réplicas das aves do Parque Nacional da Lagoa do Peixe, no Rio Grande do Sul, e trava uma luta quixotesca pela preservação do Parque. O filme é resultado do mestrado em Wildlife Filmmaking, cursado pelo diretor na University of the West of England. “Eu sou formado em Biologia e Cinema e sempre quis juntar e trabalhar com as duas áreas”, afirma o diretor Felipe Rosa em entrevista ao ((o))eco. 

O filme foi pensado e rodado durante a pandemia e Rosa conta que, em sua pesquisa, baseou-se em reportagens de ((o))eco sobre o tema. “O cinema ambiental tem sempre uma pegada ou de ativismo ou de curiosidade sobre os bichos, eu acabei indo para uma pegada um pouco diferente. Eu gosto muito da palavra, da entrevista, do personagem e tentei trazer temas ambientais, mas do ponto de vista do personagem”, afirma Rosa. 

               

O único representante brasileiro no festival é um filme de excelência, sensível, bem feito e emocionante, mas não esconde a pouca presença do país no cenário audiovisual latino-americano. “Temos tentado envolver mais o Brasil, este ano chegaram várias produções do país”, afirma Martín, “O Brasil tem que ter um papel protagonista nesse cenário. Digo isso pois são as próprias comunidades, as próprias pessoas que têm que contar suas histórias e levá-las para o mundo”.

Além da barreira linguística que tradicionalmente afasta os brasileiros dos “hermanos”, há outros fatores que explicam a ausência do país. “Eu estou fora do Brasil há 5 anos e vim fazer mestrado na Inglaterra exatamente por não haver essa possibilidade no Brasil”, conta o diretor Felipe Rosa. “Eu acabei inscrevendo o filme mais em festivais europeus e dos EUA”, acrescenta. O filme já foi exibido em mais de 30 festivais ao redor do mundo, inclusive no Wildscreen Festival, um dos mais importantes festivais ambientais que existe. 

Além dos documentários finalistas, o Santiago Wild Film Festival exibe outros

20 documentários como parte da exibição oficial do festival, sempre com a ideia de trazer novas vozes latino-americanas ou olhares do mundo para a América Latina. Na mostra oficial, destacam-se os filmes Wildcat, que investiga a saúde mental e como a natureza pode ser um caminho para cura; e A Corrente de Humboldt, produção internacional que retrata a importância do fenômeno marinho com o ecossistema mais rico do planeta entre o Chile e o Peru. Além do filme brasileiro, na categoria Novos Olhares Latinoamericanos destacam-se Shirampari: Herança do rio, sobre um jovem ashaninka (povo indígena da Amazônia) e sua jornada rumo a vida adulta e o filme Guardiões da Montanha, passado no México e traz as reflexões de brigadistas que atuam no Parque Nacional Cofre de Perote.

O festival é um convite para um primeiro passo na descolonização dos nossos olhares ou, parafraseando, Galeano, para encarar as câmeras abertas da América Latina. Quem estiver em Santiago terá ainda o privilégio de acompanhar as atividades presenciais do festival, que conta com uma programação bem interessante. 

 

 

(Da Redação com O Eco – Foto: divulgação)

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